SINTAXE (Camila Camellini)
Quem não se lembra daquele aluno em sala de aula, ou até mesmo quem não foi o aluno que sempre interrogava seu professor a respeito do por que estudar todas aquelas contas mirabolantes de matemática, ou então aquelas regras infindáveis de Língua Portuguesa, que não serviam para nada a não ser arrancar-lhe aquelas tão desejadas horas com o pessoal do clube, com a namorada, com o filme da sessão da tarde? Realmente, era de querer esganar o autor do livro, o criador da fórmula, e jogar uma bomba nas editoras existentes por aí. Tiravam o que você tinha de mais importante na vida e ainda diziam que era necessário aprendê-las. Por quê?
Taí uma pergunta que sempre todo mundo fez, mas que nunca ninguém conseguiu responder com alguma propriedade que nos convencesse. Sempre foram os mesmos “porque sim” que sequer deixavam um rastrinho de convencimento. Mas como dizem, tudo tem o seu momento certo. Para entender certas coisas também tem.
Percebi isso outro dia, com quase trinta anos nas costas, estudando regras gramaticais. O livro dizia que, quando houvesse a dúvida da colocação da crase em determinada palavra feminina, então que trocássemos a tal da palavra por outra semelhante, mas masculina. Assim, de acordo com as explicações, enxergaríamos mais facilmente a necessidade da crase ou da falta dela.
Pois bem. Todo santo dia eu recebo por email apelos de ONGs que resgatam animais de rua. Na verdade não. Se o dia realmente fosse santo, não terminaria com tantos finais tristes. Me equivoquei, e assim também tento pensar que não passa de um equívoco tantos abandonos injustificáveis.
Hoje, com a vida sendo noticiada dentro da tela de um computador, percebo o quão incoerente ela é fora dele. Uma incoerência que as ciências, tão regradas, não permitem que aconteça. Volto ao exemplo da Gramática, que tão sábia nos orienta a substituir um termo pelo outro para nos ajudar a enxergar como prosseguir com a língua sem prejudicá-la. O mesmo deveria ser feito por nós, seres humanos, diante de uma situação que gere dúvida. Acabou o deslumbramento, se irritou com os latidos, não gostou de chegar em casa e ver seu sapato destruído e ainda assim ter que aturar aquele cão que, por sinal, não era tão grande quanto é agora, abanar o rabo enquanto pula incessantemente em você como se nada tivesse acontecido?
Pois bem, se a dúvida é como dar um basta nisso, substitua o sujeito em questão, o cão, por outro semelhante, que também sinta fome, sede, frio e que, igualmente, fique ansioso por sua chegada ao final do dia: um filho, um sobrinho, uma criança humana. Você colocaria qualquer desses sujeitos dentro do carro e o largaria à beira da estrada, no meio do mato ou dentro do lixo, sem passar pela sua cabeça as dificuldades e o sofrimento que ele sentiria por sua causa? Se a resposta é não, então obviamente não faça isso com seu animal.
A vida não concede nada que não tenha importância. A Natureza é sábia, não perderia tempo produzindo algo que não fosse necessário. Enxergar pouca importância em algo é exportar a pouca importância que existe dentro de si mesmo. Assuntos sobre abandono animal não são “assuntos de cachorro, gato, etc. e tal”. Abandono animal é assunto sobre comportamento humano, assim como as ciências não são simplesmente assuntos sobre regras maçantes e fórmulas mirabolantes. Ciências é o comportamento humano codificado em números, letras, sinais. E o que elas têm a nos ensinar não é a maneira como operá-las. Isso é apenas um procedimento para se chegar à compreensão: compreensão dos direitos e deveres; compreensão de nós mesmos.
Explicando como substituir um termo pelo outro para que a Língua não seja prejudicada, a Gramática nos ensina a “arte” da identificação, de se colocar no lugar do outro e adquirir a capacidade de não prejudicar a vida. Essa é a ideia.